Por que escrever?

Luis Spaziani
11 min readJan 11, 2021

Extrato do meeting criativo “Por que escrever?” realizado pela Faculdade Novo Oeste

Faça o que é significativo, não o que é expediente

É muito árduo tentar falar sobre o que nos motiva, ainda mais quando a motivação não reside em cheques, repousos postiços, gondolas em Veneza, filas na Disney ou até mesmo em complexas filosofias. É árduo tentar ilustrar, em algum formato inteligível, um sentimento que não provem das conjecturas abordadas do intelecto, ou das fabulas principescas que cinzelam nossas cabeças desde que nos apressam a nos encaixarmos no mundo, mas, antes, dum profundo ódio de tudo, inclusive de si mesmo…

Como posso começar? Começamos pelo meu irmão. Ele, sempre gostou de aviões. Nascido por um casamento separado do meu pai, prévio àquele que me colocaria no mundo, o Diego provou-se um fiel amante das grandes aves metálicas ainda com o rosto imberbe. Parece que lhe recitaram Exupery desde que se incubava no ventre de sua mãe; e apenas conseguiu encerrar o punho, não desgrudou dum chaveiro que retratava a aviação italiana. Encima do berço rodeavam aviões de todos os tamanhos e, preso de tal mania, o menino não deixava de fazer voar qualquer coisa que segurasse. Inclusive com o dentifrício fazia questão de imitar o barulho agudo dos motores para direcionar a escova até a boca miúda e empastar-se os dentes; sim, exatamente, feito os clichês de crianças sonhadoras que miram pro céu ou espaço. Um verdadeiro obcecado, que acabaria por obcecar-se mais, assim, quando após alguns anos compreenderia por completo que há maneiras por trás dos mais absurdos sonhos. Posso ser um aviador? Pode ser tudo que quiser — foi-lhe dito… que coisa terrivelmente chocalhante para se dizer a uma criança! Esta de poder ser, e ainda mais desconcertante, o que quiser. Talvez, o princípio de toda ambição, bem como de toda a dor da alma humana. Instaurou-se, pois, a ideia como uma monomania, a de alistar-se para uma das carreiras mais competitivas na Itália: entrar na academia para se tornar um aviador do exército. De fato, só se agigantou a tal ideia, imaginem feito um balão, quando de imberbe foi ter um humilde baço, e cresceu para dar espaço a um farto bigode, e por fim à insistente norma da academia de manter-se sempre perfeitamente escanhoado. Sim, sucedeu. Isto é o mais assustador, não é? Não tem uma jornada do herói moderna a ser explanada — ele só quis e conseguiu o que queria. Algo como um em dez mil.
Toda vez que repenso no percurso onírico do meu irmão desde a infância até à primeira vez que pôs o pé num caça, objetivo de sua vida, tenho uma obscura certeza que para mim sobrou o exato contrário… não ter objetivo nenhum. A fertilidade do meu pai deu conta de fazer só um faminto desse, isto é, o escroto direito, perdoem a vulgaridade, eu vinha do esquerdo, deveras, e dessa obstinação não me foi concedido nem o bagaço. Finalmente, antes que pensem que me utilizei desta história somente para introduzir a minha, e que é um truque baixo e bem comum entre os escritores, talvez gerar simpatia, talvez provar derrota, talvez me gabar dum familiar, gostaria de deixar claro que precisarei repescar meu irmão em seguida, portanto, tudo o que devem ter conjecturado quanto a esta introdução é provavelmente verdade, mas não é, de tudo, uma artimanha…

Como já disse, mesmo que possuíamos o mesmo sobrenome, não compartilhávamos das mesmas aspirações, na verdade, a própria tendência de ter uma aspiração nos fazia divergir. Quando eu era novo minha paixão eram as pelúcias. Tinha uma dezena delas, todas com seu nome, características e atitudes. Minha favorita, o Toponz, era um camundongo cinzento trajado dum pijama verde, com uma dicção entusiasta e um sotaque digno de uma ratazana, também, um instinto paterno para com o resto da família peluda. Com esta, criava pequenas interações e longas historias feito um diminuto Spielberg. Amava tanto os improvisos duelos quanto as curiosas amizades; eram meu maior galardão, até que — e como se deveriam odiar estes até que, mudamos de casa, e, ao perder o Camundongo, perdi qualquer resquício de paixão. O resto da infância feneceu na televisão e a puberdade na sempre tão mais gloriosa tecnologia. Quando me perguntavam o que queria fazer a resposta se prendia na língua. Simplesmente não sabia. Acresce que eu nunca me decidira em nada e minhas motivações de querer se resumiam àquelas da boa maioria das crianças sortudas do século XXI, ou talvez de qualquer século… ter dinheiro. Meu intuito de lograr da vida copiava, fastidiosamente, o que a maioria das pessoas sumariavam por “lograr a vida”: terminar os estudos, trabalhar, alugar uma casa, ter uma família, sobrar tempo para fazer algo que se goste, morrer sendo um bom avô… O usual. Aqui não posso deixar de mencionar que me aparenta que esse instinto primordial de empreender a vontade da sociedade (isto é, se encaixar normativamente nela) seja tão sedutor, ou talvez opressivo, que a grande massa, colocada em xeque por essa falsa alforria, não vislumbre outra alternativa. E isto não é errado, como diria alguém tirado dum romance do Dostoievski — nem todo mundo é um napoleão, e nem todo mundo precisa revolucionar as regras do jogo que lhe forem impostas, porém, não se dizer a alguém que há outras maneiras, resume uma entre as muitas razões do nosso perpetuo degringolar, a decadence, encontrada num mundo onde a maioria das pessoas se odeiam e odeiam o que fazem, sem saber bem o porquê. Este sentimento, pois, de ter de me encaixar em algo que detestava, foi o que me assolou durante a vida inteira.

Quando ainda morava na severa ditadura da palmatoria da minha mãe, e confesso, com não muito orgulho, que me desvencilhei a pouco deste regime, não fazia ideia nem do que “satisfação” fosse, só conhecia o enfastio. No infante, e de certo modo, ainda mais no adolescente, é tudo instintivo e a flor da pele. E por instintividade e despreocupação, andei mais ou menos como andam os ambulantes, sem rumo ou ideia fixa, seguindo as aspirações de amigos, ou os conselhos da maré, abraçando qualquer filosofia, ou ocupação temporária que me preenchesse de um opaco sentimento de desfastio. O ponto, para mim, era que apesar de qualquer tentativa nunca encontrava nada que realmente me apaziguasse, e mesmo que a ideia de fazer qualquer coisa que desse dinheiro, vez ou outra, me seduzisse, algo em mim buscava fazer o que lhe trazia um grande senso de satisfação e aprazo, de outra maneira, algo em mim se buscava.
A primeira vez que senti isso fora durante uma tarefa de escrita do colegial; nossa professora de literatura pediu para que escolhêssemos um dentre três temas, e desenvolvêssemos um texto de mínimo uma página. Eu amava contar, desde as pelúcias, e, feito os dias que brincava com elas, meu narrador interior ficou eufórico. Havia também desenvolvido uma terna inclinação à leitura, especialmente quando terminei meu primeiro romance — “As aventuras de Robinson Crosoé” do Daniel Defoe, e descobrir que podia construir minha própria história, foi o que me catapultou numa libertina vontade de escrever. “Meu computador tem sapatos” foi o tema que escolhi, para narrar o estranho encontro entre um rapazinho e seu PC, no dia que este começou a caminhar pela casa e falar feito gente. A graça deste texto residia em talvez o fato de não tentar dar algum tipo de explicação por trás do absurdo evento com o qual o protagonista se aterrorizava e questionava, mas mais contrastar a atitude investigativa do jovem com o espirito sereno do computador, que não dava a mínima para o surto, mais se importava em preparar pipoca e assistir um filme. Era contada com uma pitada de terror, e uma ironia singela, que me fez ganhar o “prêmio” de ter que ler o texto em voz alta diante da sala toda. O entusiasmo que senti por ter que ser ouvido (ainda por algo que eu fiz), formaria possivelmente minha profunda e insondável ligação com a escrita e uma ingênua empáfia de querer trazer algo ao mundo, mas melhor me serviria como uma entre as muitas provas para sair da mais longa e incerta fase da minha vida.

Porque não me daria conta naquele exato momento? Do que exatamente? Se lhe pareceu uma motivação convincente o bastante para seguir numa direção, não imagina o que a convicção pode fazer com um coração indeciso, não imagina o que um rumo pode fazer com um nômade. De motivos para me convencer, de que deveria empreender-me nas artes literárias, sobravam aos borbotões. Não somente a professora se convencera de que eu possuía algum tipo de talento da letra, como me tornou seu mais próximo pupilo. Era utilizado em qualquer tipo de prova ou tarefa como exemplo de destaque para vexar o resto da sala de sua letargia (coisa que só me acrescia inveja e bullying), as expectativas quanto ao meu desempenho com o Italiano, Gramatica e Literatura eram tão grandes que podia sentir os olhos da professora chispar toda vez que lhe entregava uma folha nas mãos, e quando errava, pobre eu, era o que mais sofria sua aguerrida reprovação e inestimável exortação. Minha relação com a professora Maria, eram puras chamas, e fora, possivelmente, a única docente que amei, por acreditar tanto em mim, e colocar tanto de si em tudo que me dizia a respeito…
E por isto, por acreditar tanto quanto demandar, que, no exame final do colégio, ao se decepcionar totalmente com a minha negligencia para com o tema que juntos havíamos escolhidos para abordar, eu também me desiludi com qualquer possível esperança literária. E retomei meu não-rumo.

Rumo era o que faltava. Sêneca bem pontuou: “quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável”, e não haveria melhor maneira de descrever meu estado na época. Um navegador sem rumo, perdido entre as tantas possibilidades de direção, e sinceramente, não atraído por nenhuma. Abalado por ventos e desventuras, curiosidades e incômodos, letargias e fogos de palha; o que me atraia era subjugado à durabilidade do meu interesse, à minha austeridade com qualquer assunto e ceticismo para os sintomas mais oportunos. E não me divagarei em tentar explicar os pormenores desta viagem, mas numa época incessantemente mais cibernética, amassada e cheia de revoluções, é tão fácil se perder entre as opções e afastar-se a cada vez mais, do que realmente é significativo, e, para o jovem, ou o aspirante, a benção de ter tudo ao alcance acaba devenindo uma maldição — uma verdadeira contradição.

Quando penso nessa confusa fase, lembro claramente de uma curta interação com a minha mãe, quando lhe anunciei, numa breve epifania, e após ter mudado de curso e pretensão umas três vezes, que meu tesão era provavelmente fazer fotografia, devido a um pequeno ensaio que decidi oferecer para um amigo que estava entusiasta de ter, na época, “a câmera com maior número de megapixel possível num celular”. E eu, sempre atraído por novidades, tive mais um breve sentimento de completude ao me fantasiar de fotografo. A reação da minha velha, contudo, foi simbólica: ela nem se atreveu a responder-me, mas abafou uma risota num ligeiro virar dos olhos, como se a cena, de tão cômica, já nem valesse mais o desgaste. Achou que estivesse motejando? Talvez estivesse: minha vontade de me levar a sério.

A escrita continuaria, durante anos, sendo um remédio paliativo, um placebo para descontrair-me do desinteresse, um alivio dos arredores, mas não olharia para a escrita com um olhar faiscante, até 2017, quando teria meu próprio desejo de começar um livro. Nessa época, me encontrava como todo mundo esperava que me encontrasse: com estudos terminados, morando com alguém, tendo minha casa, um bom trabalho, os desejos de ser pai, e a aspiração de me tornar um bom avô, mas acima de tudo, algum tempo de sobra, aquele tempo que sobra no meio desse formalismo todo para fazer o que eu gostava: escrever. Assim escrevi, e mesmo que não tenha ido em lugar nenhum neste ano, o sentimento de afeto para com meu daemon criativo só acrescia… imaginem feito um balão… quando de imberbe foi ter um humilde baço, e cresceu para dar espaço a um farto bigode, e por fim à insistente vontade de ser. Ser.

Lembro-me bem que trazia escondido minhas estórias em italiano para meus alunos, mentia para eles dizendo que eram duma minha amiga escritora na Itália, e que era uma forma da gente aprender o pretérito imperfeito, perfeito, condicional, e tudo o que havia de ensinar, ajudando uma querida colega ao mesmo tempo. Pedia para que fossem os mais sinceros possíveis com as críticas e elogios, e lhe falava dessa “escritora” com o maior entusiasmo que conseguia… Enganava meus alunos, como enganava a mim mesmo, sobre o que eu sempre queria fazer. Era o modo menos arriscado de ser, a forma mais singela de me assumir.

Foi só em 2018, quando após terminar o maior relacionamento da minha vida, que voltei a amar, e amei uma menina que amava a poesia, e os poetas, e todos estes loucos que se dão ao trabalho de vivenciar o oficio da letra, e assim, quando ela soube que eu estava trabalhando num livro infantil chamado “Um Pequeno Pirata” ela me perguntou o que eu queria fazer… a falta de preconceito a esta casta de surtados chamados escritores, o amor a esta anomalia que se intitula de artista, e a despretensão com o qual aquela pergunta tinha sido feita, sem contornos, sem determinação, sem demandas, sem expectativas; me deu conforto, a calma que eu precisava para acreditar… confesso-lhes, que ninguém torceu-me as rédeas, nem forçou-me a tal enunciando, porque não demorou, foi tão espontâneo, como se a língua depois de tantos anos se soltasse, que proferi: quero escrever.

O que coisa terrível que é esta de querer! Que coisa terrível é esta de ser!

Durante a minha vida toda, nunca tive uma vontade. Nunca tive uma aspiração, ou um objetivo. Nunca consertei um proposito, nem corri atrás do que me satisfizesse completamente. Andei mais ou menos como andam os ambulantes e os nômades, sem rumo ou ideia fixa, num mar imenso cheio de coisas contraditórias e filosofias complexas, repleto de alternativas insatisfatórias, e incompletudes… para mim, a resposta residia no amago de quem eu era desde o começo, um pequeno contador de histórias, a despeito da vontade do mundo, dos outros, da sociedade, para mim. Não é como se eu queria ser um escritor renomado; não é como se eu queria suceder, não é como se eu tinha certeza de ser aquele um em dez mil… era só porque nada fazia mais sentido. A meu irmão fora lhe dada a obstinação de um sonho, ele QUERIA ser um aviador. Eu não recebi esta obstinação, e não é que eu queira, pois se pudesse me abandonar na superficialidade do mundo, e ser qualquer coisa que me traga dinheiro, abandonaria de bom grado este oficio. Não é que eu queira ser um escritor, eu não POSSO ser outra coisa. Assim enquanto ele pilotará seu avião, eu dirigirei minha pena, enquanto ele cortará as nuvens, eu talharei meus parágrafos, enquanto ele traçará sua história na aviação, eu contarei esta história, enquanto ele for céu, eu serei tinta.

Alguém disse: Faça o que é significativo, nunca o que é expediente. Mas o que é que é significativo? O que nos significa?

Acho que resumiria assim a profunda essência do significativo: algo que apazigua um perpetuo anseio do homem. Um prumo, uma bussola interior, um dever para consigo mesmo, uma inevitabilidade do ser.

Enfim, é também inevitável, que este sentimento, ao longo dos anos, acabe se distorcendo, ou se afrouxando, ou se engrandecendo demais para que seja tolerável. Com suas expectativas, grandiloquências, derrotas, e constante frustrações. É impossível, manter-se puros e condizer à beleza de quem só quer escrever, sem pretensão, sem expectativa, sem frustração; e só escreve, pelo simples motivo de não poder deixar de fazer a única coisa que sente de fazer. É inevitável para quem navega, vez ou outra, desconfiar do prumo, do rumo, da bussola, especialmente num mundo que nos enlouquece, nos repudia e não nos reconhece. Mas se em ti não há escolha, salvo navegar, se em ti não há outra vontade, salvo aquela de sulcar os mares, sem em ti não há mais nada, além dessa libido pela letra… não procure tantas motivações, outras alternativas, outras soluções… Por que você escreve? Por que escrever? Alguém nos perguntaria. E talvez a simples resposta seja

Eu escrevo, porque em mim não há outra maneira.

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Luis Spaziani

Quinhão dum escritor diminuto. Cofundador do coletivo literário Um Tinteiro. Professor de Italiano.